sábado, 19 de junho de 2010

Em 2006, ficamos aqui em Brasilia, em hotel, praticamente por um mês sem trabalhar. Tinha tempo pra pensar. Por isso o texto abaixo.

A CAMAREIRA


Sou uma camareira e hoje estou feliz, encontrei mais um amor. Quando comecei a trabalhar em hotel, tinha acabado de fazer dezoito anos e foi o único emprego que consegui. Tinha que trabalhar. Morava com meu pai em uma quitinete. Ele era vendedor em uma loja de tecidos. Isso acabava comigo. Ver meu velhinho (assim o chamava sempre) com seu cabelo branquinho, tão baixinho, tentando ser gentil, fazendo de tudo para vender um pedaço de pano. Às vezes, me escondia na rua, em frente à loja, e ficava observando. Via o cansaço em seu olhar, não podia deixá-lo ali. Ele pagava, há doze anos, o tratamento de minha mãe, que estava na casa de uma irmã e que alimentava nele o sentimento de culpa por tê-la deixado doente. Quando eu tinha quase seis anos, meu pai se apaixonou de verdade por outra mulher e saiu de casa. Ele tinha ido ao consultório com minha mãe, grávida de seis meses, quando conheceu a outra mulher e saiu de casa no dia seguinte.

Era um homem de quase sessenta anos, baixinho, de cabelos quase grisalhos, quase compridos – a simpatia em pessoa.
Ela (a outra) tinha vinte e seis anos, com aparência de mais. Estava grávida de oito meses e aguardava para ser atendida.
Ele esperava a esposa sair do consultório – gravidez de risco, quarenta e dois anos.
Se enxergaram. Alguns dias depois, ele estava na sala de parto, segurando nos braços o filho dela (da outra).
Quando saiu de casa, sua mulher grávida, desesperada, tomou dois comprimidos para dormir. Começou a sentir dores fortes no pé da barriga. Não reagiu. Nem percebeu que coisas saíam de dentro dela. A dor ficou maior. Chamou por Deus.
Ele voltou em casa e ela, seca, tentava amamentar seu filho nascido de seis meses, besuntado de sangue, inteiro e sem vida.

Minha mãe, depois disso, foi perdendo a força. O seu corpo não respondia aos seus pensamentos. Sentiu uma fraqueza progressiva e nunca mais saiu da cama.
Meu pai carrega essa culpa até hoje. A nova paixão não durou mais de dois anos e ele vive sozinho, comigo.
Estudei em colégios públicos, consegui fazer bons amigos. Passava os meus dias cuidando da casa, cozinhando, mas sempre arranjava tempo pra estudar e ler. Em frente ao nosso apartamento tinha uma locadora de livros. Sempre que conseguia juntar dinheiro, pegava algum para ler. Tinha uma relação de amor com os livros e todas as vezes que ia devolvê-los sofria profundamente. O dono da locadora ficou meu amigo e me ensinou muito sobre literatura. Ele me contava sobre a vida de cada escritor – quantos livros tinham escrito, quantos relacionamentos tinham tido, como morreram e, os ainda vivos, o que faziam.
Eu dava banca de português para algumas crianças do bairro e assim conseguia economizar algum dinheiro para alugar os meus amores, mas nunca pude comprar nenhum.
Quando fiz aniversário de quinze anos, o dono da locadora me deu um livro de presente - o que eu tinha gostado mais. Havia locado ele cinco vezes seguidas, só para senti-lo ao meu lado. Era a história de um jovem escritor que vai para uma outra cidade tentar a sorte. A maneira como era descrita a sua vida, os seus pensamentos, os seus temores, os seus sofrimentos, era tão leve, tão simples, que eu me apaixonei.
Quando abri o embrulhinho e vi a capa encardida do meu amor, que tanto já tinha ido e que agora estaria ao meu lado para sempre, descobri a felicidade e acreditei na segurança pela primeira vez.


Pequena, sempre tinha crises de vômito. Quando começava, não parava mais até ser internada e tomar soro na veia. Em todos os exames não aparecia nada. Quando começavam os primeiros sinais do enjôo, sua mãe sempre dava uma chave grande de porta de casa para ela segurar na mão, apertando bem. Era uma superstição. Era para abrandar. Algumas vezes dava certo alívio; em outras, não fazia nenhum efeito. Ela nunca soube qual a relação da chave com o enjôo. Chave que só podia ser de casa. Algo que não sai do lugar, sólido, seguro, garantido....
Firmeza - era isso que ela necessitava na infância.
Não conseguiu. Enjoada viveria para sempre.

Quando fiz dezoito anos, tirei minha carteira de trabalho e fui atrás de emprego em um hotel que ficava perto de casa. Me aceitaram logo, precisavam de uma camareira. Pagavam um salário e meio, o que era uma fortuna para mim. Quase o que meu pai ganhava depois de tantos anos de trabalho. Fui até a loja de tecidos contar a novidade e como sempre, antes de entrar, parei por um tempo e fiquei olhando para ele, com sua calça de tergal e uma camisa de algodão azul escura com a logomarca da loja. Chorei por alguns minutos, mas estava feliz, consegui encarar a cena e fazer parte dela. Meu pai me abraçou, já era final de expediente e saímos juntos. Comemoramos a novidade comprando, além do pão de cada dia, umas fatias de presunto, queijo, cerveja, Coca-Cola e uma barra de chocolate. Teríamos mais dinheiro dali para a frente.

Esqueci de contar à minha mãe e só no dia da minha primeira folga fui visitá-la. Nossos encontros eram sempre cheios de lembranças, mas prefiro não falar muito sobre eles.
Me adaptei rápido ao trabalho. Aprendi todos os truques para forrar camas, simplesmente me imaginava fazendo barquinhos e aviões de papel. Arranjei uma maneira de transformar o hábito em algo interessante: em cada quarto que entrava para limpar, observava todos os detalhes – as roupas, os objetos, os costumes, os cheiros....tentava descobrir como seriam aquelas pessoas. Algumas passavam muito tempo em um mesmo quarto e o transformavam em sua casa, outras, só uma noite. Esse meu método investigativo passou a se tornar uma obsessão. Em alguns casos, os mais atraentes, passava tanto tempo examinando os detalhes, que chegava a descobrir até mesmo o tipo físico da pessoa. Se era baixa ou alta; homem ou mulher - através da roupa. Se tinha cabelos lisos, encaracolados ou com caspa – através do shampoo; pele seca, oleosa, normal ou mista – através dos sabonetes e cremes. Se tinha barba, depilava ou raspava, e assim eu ia encontrando as minhas personagens e facilitando os meus dias completos de imaginação.
Algumas, sem adivinhar, me presenteavam deixando livros que estavam lendo no criado-mudo. Parecia que tinham trazido para mim e eu sempre lia um pouquinho de cada vez.
Até mesmo quando iam embora e eu não tinha terminado, ficava feliz por ter tido a oportunidade de conhecer mais um amor.... mesmo sem saber qual seria o final.


2006

sábado, 5 de junho de 2010

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, QUEM?!


Meu banho dura no mínimo vinte minutos. É embaixo do chuveiro ligado - bem quentinho de preferência - que eu medito.
São os dois momentos onde consigo me perder em pensamentos: No banho e dirigindo.
Canso de chegar de carro no lugar que estou indo e não sei como fiz o percurso. Vou totalmente no automático. Isso é um perigo.

Ricardinho vive me perguntando cadê minha consciência ecológica, minha preocupação com o futuro da terra, com os próximos habitantes etc etc.
Pois é. Sempre penso muito nos outros, mas, sinceramente, vou continuar tomando meus longos banhos quentes. E vou continuar pensando.

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