Supostamente, o som do carro não ia tocar nada que melhorasse o clima.
Ela estava com muito sono. Chovia pingos finos no vidro. Só queria voltar pra casa, fechar a porta do quarto, apagar a luz e acordar dois dias depois, alheia a tudo e a todos. Ele estava em prantos no banco do carona. Demorou tanto para soltar o choro e agora escorregava nele, se ensopava dele. Por ela, ele podia se sufocar na própria água. Ela afundou o pé no acelerador e ele colocou o cinto pra mostrar que estava com medo. Seguiram ouvindo apenas as palavras cantadas nas músicas, algumas, que às vezes, até se encaixavam, perfeitas, na situação, parecendo trilha composta para filme. O carro deslizava na pista como em piso de mármore, sem atrito. Nada de obstáculos. Nada de motoristas barbeiros interpondo o caminho. Só a chuva e o vento e o peso dos pensamentos. Um sentimento de tristeza que deveria durar, sem passar tão rápido dentro dele, sem correr junto com o sangue pra ser eliminado totalmente após o circuito.
Um dia, em algum lugar, eles se conheceram e quando conversaram, se amaram. E passaram muitos dias sem sair de casa, subindo com as pernas na parede. Encostados no colchão que ficava em cima do chão, junto de diversas outras coisas espalhadas por aí - dois copos de água sujos de suco de uva; um cinzeiro transbordando de bagas de cigarro e uma pontinha de um baseado na borda; uma garrafa de vinho carmenere; uma caneca melada de resto de leite condensado, misturado com ovo maltine, comido colher por colher, bem devagar; 3 dvds de Groucho Marx e o livro de Sérgio Sant’anna “O Monstro” que estava na bolsa dela quando se encontraram. O lençol era uma mistura de cheiros - perfume, suor, baba, sexo, comida.
Grudaram nos primeiros meses. Saíam pra trabalhar e só pensavam em pular um em cima do outro, com declarações ridículas e promessas de afeição eterna. Ela passava todas as noites na casa dele e os finais de semana eram reclusões. Assistiam filmes, ouviam música, dançavam, bebiam, quase não dormiam ou, às vezes, dormiam o dia todo.
Mas nem tudo era o que parecia. Essa perfeição de novela. Dentro dela as coisas não eram tão inteiras, partiam da agonia para o medo. Tinha alguma passagem nele que nunca ficava muito clara. Era a pergunta simples que ele nunca respondia, o jeito como ele a tocava, as vezes que ele não ficava excitado - ou deixava de ficar em momentos cruciais.
Mesmo apenas no início da relação, ela entendia que o futuro com a obscuridade dele seria o seu estrago. E foi.
2007
Ilustração - Pati Woll
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