sábado, 7 de fevereiro de 2009

SOBREVIVER


Supostamente, o som do carro não ia tocar nada que melhorasse o clima. Chovia pingos finos no vidro. Ela só queria voltar para casa, fechar a porta do quarto, apagar a luz e acordar dois dias depois, alheia a tudo e a todos. Ele estava em prantos no banco do carona. Demorou tanto para soltar o choro, que agora escorregava nele, se ensopava dele. Por ela, ele podia se sufocar na própria água. Ela afundou o pé no acelerador e ele colocou o cinto para mostrar que estava com medo. Seguiram ouvindo apenas as palavras cantadas nas músicas, algumas que, às vezes, até se encaixavam perfeitas na situação, parecendo composta para filme. O carro deslizava na pista como em piso de garagem de shopping, sem atrito. Nada de obstáculos. Só a chuva e o vento e o peso dos pensamentos. Um sentimento de tristeza que deveria durar, sem passar tão rápido dentro dele, sem correr junto com o sangue para ser eliminado totalmente após o circuito.
Um dia, em algum lugar, eles se conheceram e, quando conversaram, se amaram. E passaram muitos dias sem sair de casa, subindo com as pernas na parede, deitados no colchão que ficava em cima do chão, junto de diversas outras coisas espalhadas por aí - dois copos de água sujos de suco de uva; um cinzeiro transbordando de bagas de cigarro e uma pontinha de um baseado na borda; uma garrafa de vinho carmenere; uma caneca melada de resto de leite condensado misturado com Ovomaltine, comido colher por colher bem devagar; 3 DVDs de Groucho Marx; e o livro de Sérgio Sant’anna “O Monstro”, que estava na bolsa dela quando se encontraram. O lençol era uma mistura de cheiros - perfume, suor, baba, sexo, comida. Grudaram nos primeiros meses. Saíam para trabalhar e só pensavam em pular um em cima do outro, com declarações ridículas e promessas de afeição eterna. Ela passava todas as noites na casa dele e os finais de semana eram reclusões. Assistiam filmes, ouviam música, dançavam, bebiam, quase não dormiam ou às vezes dormiam o dia todo. Mas nem tudo era o que parecia: essa perfeição de novela. Dentro dela as coisas não eram tão inteiras, partiam da agonia para o medo. Tinha alguma passagem nele que nunca ficava muito clara. Era a pergunta simples que ele nunca respondia. Mesmo ainda no início da relação, ela entendia que o futuro com a obscuridade dele seria o seu estrago.
Mesmo pensando e percebendo que não deveria, foi morar na casa dele. Tudo que ela pensava que alguém poderia fazer por outro alguém, ele fazia. Tudo que ela podia esperar de um homem, ele era. Mas tinha alguma coisa estranha que não correspondia com tudo que ele tentava ser. Ele era uma companhia totalmente imperfeita.
Tudo que sabia da vida dele vinha de fora dele ou do que conseguia perceber. Era uma relação cheia de suposições. Ele não falava dos seus relacionamentos passados, nem da sua vida sexual, dizia que “isso” não importava para eles e não fazia idéia de como “isso” era importante para ela. Ela achava que o passado fazia dele o que ele era hoje. Principalmente toda a sua estranheza, que também vinha de lá. Como uma pedra marroquina, maciça, densa, resistente, mas com um miolo secreto cheio de camadas coloridas.
Em uma noite, ela, cansada de tudo, resolveu sair de casa para ouvir música em seu carro enquanto passeava pela cidade noturna. Adorava fazer isso, montar a trilha sonora de algum momento de sua vida e deixar o som comer a sua pele. Passou na frente de um bar e viu pessoas conhecidas. Não parou. Era uma rua cheia de bares e, como estava andando a quase 20 km por hora, reconheceu outro rosto. Era Gustavo, encostado em um carro estacionado. Cheio de marcas dos vinte cinco anos que passaram sem se ver. Quanto tempo! Moravam na mesma cidade, tinham, provavelmente, o mesmo estilo de vida, mas nunca se encontravam. Ela parou, deu marcha a ré e, na frente dele, baixou o vidro do carona. Ele levou apenas alguns segundos para reconhecê-la. Entrou no carro e os dois se abraçaram. Ele estava bêbado e ela magoada. Uma saudade grande e a sensação de que ainda tinham quatorze anos fizeram com que se beijassem. O beijo era desesperado. Necessidade de sorver o outro. Rápido, sôfrego. Eles começaram a rir de nervoso e ela acelerou o carro para qualquer lugar, a música que tocava naquele exato momento, sem que ela mexesse no som, era “Have I Told You Lately?”, de Van Morrison. Dentro daquele carro ela conseguia estar em um lugar sem forma. Tinha essa capacidade de sentir o indefinido, o substrato, a doçura de um instante. Mas isso não era tão bom para sua vida, em algumas situações ela percebia profundamente o lixo, o podre, a perversão. Pararam o carro na frente de um prédio, subiram e entraram no apartamento dele. Estava ficando tarde, conversaram sobre suas vidas superficialmente e ela quis ir embora.

Ela voltou para casa. Aprendeu que era fácil estar com outra pessoa e voltar pra casa como se nada tivesse acontecido sem sentir remorso nem culpa. Nada. Mas para que precisar de outra pessoa? Não tinha sentido para ela estar com ele e sentir vontade de estar com outra pessoa. No entanto, ele continuava dormindo, apenas se mexeu quando ouviu a porta abrir, mas o individualismo não o deixou perceber que ela não estava ao seu lado durante a noite.
De manhã, acordaram como se nada tivesse acontecido. Ele sempre acordava desse jeito, com a cara limpa. Ela juntava o mundo de mágoas acumuladas pelo desprezo dele para explodir algum tempo depois. Foram andar no parque. As árvores exalavam pureza, o céu maravilhoso, de um azul fulgente. Nenhuma nuvem, nenhum desenho de fumaça de avião. Ela levanta a cabeça e respira fundo. Parece que aquela vastidão azul vai entrar por todas as suas frestas. Quer correr tão rápido e forte para alcançar aquela sensação absoluta de saber voar. Suas pernas não ficam leves e, sim, mais pesadas. Está presa ao chão. Tanto azul pesou fundo em seu corpo.



2007

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