domingo, 18 de janeiro de 2009

O SER CATIVO

Esta é a história de Hera: uma mulher pálida, largada dentro de um quarto fosco, acompanhada por caixas de papelão, daquelas de supermercado, cheias de frascos de esmaltes, perfumes vazios, restos de batons de todas as cores, potes de cremes importados, alguns ainda lacrados com a validade vencida. Fora das caixas, há pilhas de jornais e revistas velhas, que são as únicas relações dela com o mundo. Em uma parede, tem uma estante entupida de livros. O quarto não tem luz das janelas, é coberto no chão, nas paredes e no teto de recortes desses jornais e dessas revistas. Nenhum espaço em branco. Só palavras escritas. Não tem televisão. Ao lado da cama, está um velho aparelho de som três em um, alguns vinis e algumas fitas K7, de onde ela escuta apenas alguns pedaços de músicas, nunca deixa tocar até o fim. No fundo do quarto, uma porta leva a um banheiro. Os poucos utensílios que ela utiliza e sua comida são entregues através de uma janelinha que dá para o corredor da casa. Ela não quer ver as pessoas. Isso já está durando nove anos e seis meses. Algumas vezes, alguns amigos ou familiares tentam se comunicar com ela através da janelinha, mas ela não responde. Apenas ouve calada. Aprendeu a ficar calada. Quando precisa pedir remédio para febre, dor de cabeça ou enjôo, escreve um bilhete e coloca na janela. Quase nunca fica doente, mas tem dores de cabeça terríveis nos períodos menstruais e, algumas vezes, quando se lembra de determinadas pessoas, não pára de vomitar. Se alimenta de frutas, arroz integral com gergelim e, todo final de tarde, de duas canecas de cevada com leite em pó desnatado e açúcar mascavo. Esse é o horário do dia que mais gosta, quando o sino da igreja, que fica na mesma rua, toca seis vezes e ela fica deitada na cama imóvel, ouvindo aquelas badaladas fortes e suaves pelos seus movimentos. Não adianta alguém tentar levar qualquer comida diferente, ela não aceita, devolve intacta. De novidade, só recebe livros. Seu organismo está carente de quase todos os nutrientes necessários para sobreviver, mas ela sobrevive. E bem. Algumas vezes, também pede produtos de limpeza, quiboa, desinfetante, buchas, pano de chão e vassoura para arrancar tudo que está colado no chão. Esfrega até sair toda a gosma. Depois, passa uma semana andando no chão gelado e deitando nua pra sentir uma sensação diferente, mas logo cansa daquilo e começa a recortar e cobrir de novo todo o chão daqueles recortes com caras de pessoas para que ela possa pisar. Cospe em todos aqueles rostos conhecidos e desconhecidos até transformá-los em manchas pretas. Eram pessoas e ela não queria ver mais nenhuma pelo resto da vida. De vez em quando, tinha esses rompantes de arrumação e passava dias inteiros organizando suas roupas, enfileirando cada peça por cor e tipo dentro do armário. Também limpava as caixas de papelão, mas nunca jogava nada fora. Cheia de manias, tem pavor de mudanças.
Nos primeiros anos, chorava quase todos os dias, depois foi secando por dentro, já não tinha mais lágrimas, a pele estava toda enrugada, os cabelos secos, as unhas curtas, quase na carne, de tanto roer. Era filha única. Quarenta e poucos anos. Não tinha filhos.
A casa fora do quarto funcionava normalmente. Quando começaram as crises de isolamento, sua mãe, uma mulher de 65 anos, professora de literatura brasileira, se mudou para lá. Na primeira vez que aconteceu, D. Rita, a faxineira, achou que ela tinha saído pra trabalhar e que havia deixado o quarto trancado. Não pôde limpar, nem imaginou que Hera estava enfurnada ali dentro. Voltou dois dias depois e o quarto estava trancado de novo. Resolveu ligar para o trabalho dela e disseram que Hera não aparecia há quase uma semana. Ouviu um barulho, chamou a patroa e nenhuma resposta. Ligou para a mãe dela e resolveram arrombar a porta. Encontraram Hera quase morta, sem comer e sem beber. Foi a partir desse momento que ela parou de falar. Parou de trabalhar, se escondeu definitivamente no quarto e iniciou o seu processo de reclusão. Passava os dias lendo e escrevendo em cadernos. Aparentemente, nada tinha acontecido antes disso que justificasse aquele isolamento. Apenas uma coisa chamava a atenção de algumas pessoas que conviviam com ela – as mais íntimas e, principalmente, a faxineira: a sua mania de juntar bagulhos. O apartamento era lindo, espaçoso, todo bem decorado com móveis modernos, mas o seu quarto ia com o passar do tempo virando um depósito de quinquilharias, de todos os tipos. Ela não deixava que a faxineira jogasse nada fora e guardava tudo no seu quarto, como se cada frasco vazio fosse algo valiosíssimo, que deveria ser guardado a sete- chaves.
Quando Hera se trancou de vez, só deixava que a mãe entrasse no quarto para levar comida, mas toda vez que a via, corria para o banheiro para vomitar.
Ela começou a adorar a sensação de colocar para fora toda aquela humanidade. Algumas vezes, prendia o vômito o máximo que agüentava para tornar a sensação da saída mais intensa.
Foi para evitar os vômitos diários que resolveram fazer a janelinha por onde passariam a comida, os jornais, as revistas, as poucas coisas que ela utilizava e a mãe deixou de entrar no quarto, que passou a ficar trancado por dentro.
Os anos iam passando e Hera continuava seguindo sua rotina, sem novidades, lendo, escrevendo, recortando, colando, misturando em sua cabeça muitas vezes a realidade do seu passado, com as histórias dos livros, revistas e jornais. A humanidade real, misturada com a humanidade fictícia. Mas, sem deixar de ser uma ligação de características compartilhadas pela natureza humana. Os humanos, aqueles mesmos que permanecem como amigos ao lado de suas vítimas, antes e após devorá-las. E que ela tinha asco até por ela própria ser um deles.
Um dia, Hera acordou, escovou os dentes, comeu a banana, que já estava na janelinha junto com o jornal e a revista semanal, pegou uma tesoura e sentou na cama pra começar os seus recortes. Antes de separar o que iria ser cortado, passava os olhos em todas as matérias e artigos e só fixava para ler algo que realmente chamasse a sua atenção e que não tivesse imagens de pessoas, só palavras. De repente, ateve os olhos em uma página da revista, segurou com a mão a boca do estomago e colocou a língua para fora como se fosse vomitar. Saiu um sopro de ar seco. Desviou o olhar. Ficou o gosto acre misturado com o doce da banana. Voltou os olhos para a imagem que naquele momento, dava para perceber, era o rosto de um homem bonito de trinta e poucos anos, com lágrimas nos olhos. Um rosto que tomava a página inteira. Ela fixou a vista na imagem daqueles olhos vermelhos e húmidos e enxergou a sensibilidade da alma daquele ser. Que coisa linda ver a imagem de um homem chorando. Que imagem rara e sensacional. Chorou junto com ele, beijou milhões de vezes aqueles olhos divinos e não sentiu nenhuma vontade de vomitar. Ficou tão cansada com a imensitude daquela sensação boa que pegou no sono abraçada ao homem.
Todos os dias, depois que acordava, não conseguia mais dormir, pois a quantidade de pensamentos não deixava. Mas, nesta manhã, o corpo estava tão leve e a cabeça tão vazia que ela praticamente desmaiou.
Levantou de susto quando ouviu o barulho do prato de comida sendo colocado na janelinha. Por um momento, ainda meio sonolenta, esqueceu onde estava, foi na direção da porta e sem perceber o que fazia, destrancou. Deu de cara com D. Rita. As duas ficaram pálidas olhando uma para a outra sem reação, até que Hera voltou correndo para o banheiro e vomitou desesperadamente. Caiu no chão e ficou sentada em estado de choque. D. Rita gritou para a mãe de Hera que estava almoçando sentada no sofá da sala em frente à televisão e as duas entraram no quarto antes que aquela inimaginável oportunidade deixasse de ser real. Não sabiam se se aproximavam dela; se falavam alguma coisa; se chamavam alguém....acabaram sentando também no chão do banheiro e chorando, as três ao mesmo tempo.
Hera estava de volta ao mundo das pessoas. Nas primeiras semanas a porta continuou destrancada e ela passou a receber a mãe e alguns amigos no seu quarto, entretanto ainda não tinha vontade de sair dele. Não falava muito, gostava de ficar deitada na cama olhando e ouvindo as pessoas conversarem. Observava os gestos, tentava sentir as emoções de cada um. Foram dez anos sem ver o mundo, sem ver tão de perto os seres humanos. Estava envelhecida, os cabelos quase todos brancos, muito destruída por fora também.
Decidiu se desfazer das caixas de papelão, dos jornais e das revistas. As paredes e o chão voltaram a ficar limpos. A luz entrou pela janela descoberta depois de tanto tempo. Se readaptou a tudo como se o início fosse ontem. Mas, em alguns momentos, se assustava com a quantidade de claridade, de informação, de gestos, vozes, sentimentos e queria novamente estar só, era uma sensação de nostalgia, como se existisse algo em sua vida que tivesse ficado incompleto.
Percebeu que não voltou a sentir amor, carinho, felicidade, tristeza......as pessoas não lhe causavam mais nenhuma emoção. Mas será que já causaram alguma vez?
Alguns meses depois, sentiu vontade de sair do quarto. Andou pelo apartamento que agora já não tinha mais nenhum sinal de sua existência, as suas coisas estavam lá, mas o cheiro era o de sua mãe. A televisão da sala estava ligada. Ela passou em direção à porta da rua, mas o som estava tão alto para D. Rita escutar da cozinha enquanto preparava o almoço, que ela olhou para o aparelho moderno de tela plana, diferente daquele de dez anos atrás e parou intrigada. Uma imagem lhe pareceu familiar, era um homem bonito de uns trinta e poucos anos caminhando pela rua. A câmera foi fechando no rosto do homem até tomar a tela inteira da TV. Hera, instantaneamente, lembrou daquela imagem. Era o mesmo homem, os mesmos olhos chorosos, as mesmas lágrimas, a mesma sensibilidade humana. No quarto, quando viu o homem na revista, tinha ficado tão fascinada com aquela imagem absurdamente rara, que não percebeu o óbvio: era um anúncio publicitário.
“O homem é ridículo. Creio ter descoberto a causa desse ridículo: é o equívoco, o erro prático, o engano colossal que pesa sobre a condição humana.” *
Hera desligou a TV e voltou para o seu quarto. Trancou a porta.

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